Acima dos problemas da vida e do destino,
ergue-se a questão de Deus.
Se
estudamos as leis da Natureza, se perseguimos a beleza ideal na qual todas
as artes se inspiram, em toda parte e para sempre, acima e além de tudo,
reencontramos a ideia de um ser superior, necessário e perfeito, fonte eterna
do bem, do belo e do verdadeiro, a quem se identificam a lei, a justiça, a
suprema razão.
O mundo, físico e moral, é governado por leis, e essas leis denotam uma inteligência
profunda das coisas que regem. Elas não procedem de uma causa cega; o caos, o
acaso não poderiam produzir a ordem e a harmonia. Elas não emanam dos homens:
seres passageiros, limitados no tempo e no Espaço, não poderiam criar leis
permanentes e universais. Para explicá-las, logicamente, é preciso remontar até
o ser gerador de todas as coisas. Não se poderia conceber a inteligência sem
personificá-la num ser, mas esse ser não vem se juntar à cadeia dos seres. Ele
é o Pai de todos, a própria fonte da vida.
Não
se deve entender a personalidade aqui no sentido de um ser que possui uma
forma, mas muito mais como o conjunto das faculdades que constituem um todo
consciente. A personalidade, na mais alta acepção dessa palavra, é a
consciência, e é nesse sentido que Deus é uma pessoa, ou melhor, a
personalidade absoluta, e não um ser que tem uma forma e limites. Deus é infinito
e não pode ser individualizado, quer dizer, separado do mundo, nem subsistir à
parte.
Quanto
a desinteressar-se do estudo da causa primária como inútil e incognoscível,
segundo a expressão dos positivistas, nós nos perguntamos se é realmente possível
a um espírito sério comprazer-se na ignorância das leis que regulam as
condições da sua existência. A busca de Deus impõe-se. Ela é apenas o estudo da
grande Alma, do princípio de vida que anima o Universo e se reflete em cada um
de nós. Tudo se torna secundário quando se trata do princípio das coisas. A
ideia de Deus é inseparável da ideia de lei e, sobretudo, de lei moral e
nenhuma sociedade pode viver, nem se desenvolver, sem o conhecimento da lei
moral. A crença num ideal superior de justiça fortifica a consciência e
sustenta o homem nas suas provas. Ela é a consolação, a esperança daqueles que
sofrem, o supremo refúgio dos aflitos, dos abandonados. Como uma aurora, ela
clareia com suas suaves luzes a alma dos infelizes.
Sem dúvida, não se pode demonstrar a
existência de Deus através de provas diretas e sensíveis. Deus não é percebido
pelos sentidos. A Divindade ocultou-se sob um véu misterioso, talvez, para nos
forçar a procurá-la, o que é bem o exercício mais nobre e o mais fecundo da
nossa faculdade de pensar e, também, para nos deixar o mérito de descobri-la.
Mas, há em nós uma força, um instinto seguro, que nos leva até ela e nos afirma
sua existência com mais autoridade do que todas as demonstrações e todas as
análises.
Em
todos os tempos, sob todos os climas, — e é a razão de ser de todas as
religiões, — o espírito humano sentiu a necessidade de se elevar acima de todas
as coisas móveis, perecíveis, que constituem a vida material e que não podem
lhe dar uma completa satisfação; quis prender-se ao que é fixo, permanente,
imutável no Universo; compreendeu que a existência de um Ser absoluto e
perfeito, no qual identifica todas as potências intelectuais e morais.
Encontrou tudo isso em Deus, e nada além dele pode nos dar essa segurança, essa
certeza, essa confiança no futuro, sem as quais flutuamos em todos os ventos da
dúvida e da paixão.
Opor-se-á,
talvez, o funesto uso que as religiões fizeram da ideia de Deus. Mas que
importam as formas variadas que os homens emprestaram à divindade? São para nós
apenas deuses quiméricos, criados pela razão débil da infância das sociedades,
essas formas poéticas, graciosas ou terríveis, sendo apropriadas às
inteligências que as conceberam. O pensamento humano, mais maduro, afastou-se
dessas concepções envelhecidas; esqueceu-se desses fantasmas e os abusos
cometidos em seu nome, para transportar-se com um impulso poderoso para a Razão
Eterna, para Deus, Alma do Mundo, foco universal de vida e de amor, em quem
nos sentimos viver como o pássaro vive no ar, como o peixe vive no oceano, e
por quem nós estamos ligados a tudo o que é, foi e será.
A
ideia que as religiões fizeram de Deus apoiava-se numa revelação pretensamente
sobrenatural. Admitimos, ainda hoje, uma revelação das leis superiores, mas
esta é racional e progressiva; ela se faz ao nosso pensamento pela lógica das
coisas e pelo espetáculo do mundo. Está escrita em dois livros abertos
permanentemente sob nossos olhos: o livro do Universo, onde as obras divinas
aparecem em caracteres grandiosos, o livro da
consciência, no qual estão gravados os preceitos da moral. As indicações dos
espíritos, recolhidas em todos os pontos do globo através de processos simples
e naturais, apenas a confirmaram. É por intermédio desse duplo ensinamento que
a razão humana comunica-se com a razão divina no seio da natureza universal,
que ela compreende, da qual aprecia as harmonias e as belezas.
*
* *
Na hora em que o silêncio e a noite se estendem sobre a Terra,
quando tudo repousa nas moradas humanas, se dirigimos nosso olhar para o
infinito dos céus, nós o veremos entremeado de luzes inumeráveis. Astros
radiosos, sóis resplandecentes, seguidos pelos seus cortejos de planetas,
evolvem aos milhares nas profundezas. Até as regiões mais recuadas, grupos
estelares se desdobram como lenços luminosos. Em vão o telescópio sonda os
céus, em parte alguma ele encontra limites para o Universo; em toda parte os
mundos se sucedem aos mundos, os sóis aos sóis; em toda a parte legiões de
astros se multiplicam a ponto de se confundir numa brilhante poeira nos abismos
sem-fim do Espaço.
Que palavra humana poderia
descrever-lhes, maravilhosos diamantes do escrínio celeste? Sirius, vinte
vezes maior que o nosso Sol, ele próprio igual a mais de um milhão de globos
terrestres reunidos; Aldebaran, Vega, Procyon, sóis cor-de-rosa, azuis,
escarlates, astros de opala e safira, que derramam na imensidão seus raios
multicores, raios que, apesar de uma velocidade de seiscentas mil léguas por
segundo, só chegam até nós depois de centenas e de milhares de anos! E vós,
nebulosas longínquas, gerais os sóis, universos em formação, trêmulas estrelas
apenas perceptíveis, que sois focos gigantescos de calor, de luz, de
eletricidade e de vida, mundos cintilantes, esferas imensas! E vós, povos
inumeráveis, raças, humanidades siderais que os habitais! Nossa voz fraca tenta
em vão proclamar vosso esplendor, impotente, ela se cala, enquanto que nosso
olhar fascinado contempla o desfile dos astros.
E, quando esse olhar abandona os vertiginosos Espaços para observar
os mundos mais próximos, as esferas, filhas do Sol, que gravitam como nós em
torno do foco comum, o que ele observa na sua superfície? Continentes e mares,
montes e planícies, espessas nuvens empurradas pelos ventos, neves e bancos de
gelo acumulados em volta dos polos. Aprendemos que esses mundos possuem ar,
água, calor, luz, estações, climas, dias, noites, em uma palavra, todas as
condições da vida terrestre, o que nos permite ver neles a morada de outras
famílias humanas, crer, com a Ciência, que eles são habitados, já o foram ou o
serão um dia. Tudo isso, astros flamejantes, planetas secundários, satélites,
cometas vagabundos, tudo isso, suspenso no vazio, agita-se, afasta-se,
aproxima-se, percorre órbitas determinadas, levado por velocidades assustadoras
através das regiões sem-fim da imensidade. Em toda a parte o movimento, a
atividade, a vida se manifesta no espetáculo do Universo, povoado de mundos
inumeráveis, que rolam sem-repouso na profundidade dos Céus.
Uma lei regula essa circulação formidável, a lei universal de
gravidade. Apenas ela sustenta, faz mover os corpos celestes, dirige em torno
dos sóis luminosos os planetas obedientes. Essa lei rege tudo na Natureza,
desde o átomo até o astro. A mesma força que, sob o nome de atração, retém os
mundos nas suas órbitas, sob o de coesão, agrupa as moléculas e preside à
formação dos corpos químicos.
Se, após esse olhar rápido lançado nos céus, comparássemos a
Terra em que habitamos aos sóis poderosos que se balançam no éter, perto deles,
ela nos pareceria apenas como um grão de areia, como um átomo que flutua no
infinito. A Terra é um dos menores astros do Céu. E, entretanto, que harmonia
na sua forma, que variedade na sua joia! Vejam seus continentes destacados,
suas penínsulas delgadas e as guirlandas de ilhas que os envolvem; vejam seus
mares imponentes, seus lagos, suas florestas, seus vegetais, desde o cedro que
se eleva no flanco dos montes até a humilde flor semioculta na verdura;
enumerem os seres vivos que a povoam: pássaros, insetos, plantas, e
reconhecerão que cada um é uma obra admirável, uma maravilha de arte e de
precisão.
E o corpo humano não é um
laboratório vivo, um instrumento cujo mecanismo atinge a perfeição? Estudemos
nele a circulação do sangue, esse conjunto de válvulas e válvulas semelhantes
as de uma máquina a vapor. Examinemos a estrutura do olho, esse aparelho tão
complicado que ultrapassa tudo o que a indústria do homem pode sonhar; a
construção do ouvido, tão admiravelmente disposta para recolher as ondas
sonoras; o cérebro, cujas circulações internas assemelham-se ao desabrochar de
uma flor. Consideremos tudo isso; depois, deixando o mundo visível, desçamos
mais abaixo na escala dos seres, penetremos nesses domínios que o microscópio
nos revela; observemos esse formigamento de espécies e de raças que confunde o
pensamento. Cada gota d’água, cada grão de poeira é um mundo, e os
infinitamente pequenos que o povoam são governados por leis tão precisas quanto
os gigantes do Espaço. Tudo está repleto de seres, de embriões, de germens.
Milhões de infusórios agitam-se nas gotas do nosso sangue, nas células dos
corpos organizados. A asa de uma mosca, a menor parcela de matéria, é povoada
de legiões de parasitas. E todos esses animálculos estão providos de aparelhos
de movimento, de sistemas nervosos, de órgãos de sensibilidade que fazem deles
seres completos, armados para a luta e as necessidades da existência. Até no
seio do oceano, nas profundezas de oito mil metros, vivem seres débeis,
delicados, fosforescentes, que fabricam luz e têm olhos para vê-la.
Assim, em todos os meios, uma fecundidade sem-limites preside a
formação dos seres. A Natureza está numa criação perpétua. Assim como a espiga
está em gérmen no grão, o carvalho na glande e a rosa no seu botão, assim,
gêneses de mundos elaboram-se na profundidade dos céus estrelados. Em toda a
parte a vida engendra a vida. De degrau em degrau, de espécies em espécies, por
um encadeamento contínuo, ela eleva organismos mais simples, os mais rudimentares,
até o ser pensante e consciente, em uma palavra, até o homem.
Uma poderosa unidade rege o mundo. Uma única substância, o éter ou
fluido universal, constitui nas suas transformações infinitas a inumerável
variedade dos corpos. Esse elemento vibra sob a ação das forças cósmicas.
Segundo a rapidez e o número das suas vibrações, ele produz o calor, a luz, a
eletricidade ou o fluido magnético. Se essas vibrações se condensam, logo
aparecem os corpos.
E todas essas formas se religam, todas essas forças se equilibram,
se casam em perpétuas trocas, numa estreita solidariedade. Do mineral à planta,
da planta ao animal e ao homem, do homem aos seres superiores, afinamento da
matéria, a ascensão da força e do pensamento se produzem num ritmo harmônico.
Uma lei soberana regula num plano uniforme as manifestações da vida, enquanto
que um elo invisível prende todos os universos e todas as almas.
Do trabalho dos seres e das
coisas, uma aspiração se desprende, a aspiração para o
infinito, para o perfeito. Todos os efeitos, divergentes na aparência,
convergem, na realidade, para um mesmo centro; todos os fins se coordenam,
formam um conjunto, evoluem para o mesmo objetivo: Deus! Deus, centro de toda
atividade, finalidade última de todo pensamento e de todo amor.
O estudo da Natureza nos mostra, em todos os lugares, a ação de
uma vontade oculta. Em toda parte a matéria obedece a uma força que a domina, a
organiza e a dirige. Todas as forças cósmicas reconduzem ao movimento, e o
movimento é o Ser, a Vida. O materialismo explica a formação do mundo pela
dança cega e a aproximação fortuita dos átomos. Mas nunca se viu o arremesso
das letras do alfabeto, ao acaso, produzir um poema! E que poema é esse da vida
universal? Nunca se viu uma mistura de materiais produzir, ela própria, um
edifício de proporções imponentes ou uma máquina de organizações numerosas e
complicadas! Abandonada a si mesma, a matéria nada pode. Inconscientes e cegos,
os átomos não saberiam dirigir-se para o objetivo. A harmonia do mundo só se
explica através da intervenção de uma vontade. É pela ação das forças sobre a
matéria, é pela existência de leis sábias e profundas que essa vontade se
manifesta na ordem do Universo.
Censura-se frequentemente que nem tudo é harmônico na Natureza.
Se ela produz maravilhas, diz-se, ela cria, também, monstros. O mal em toda a
parte acotovela o bem. Se a lenta evolução das coisas parece preparar o mundo
para se tornar o teatro da vida, é preciso não perder de vista o esbanjamento
das existências e a luta ardente dos seres. É preciso não esquecer que tremores
de terra, erupções de vulcões desolam, às vezes, nosso planeta e destroem, em
alguns instantes, os trabalhos de várias gerações.
Sim, sem dúvida, há acidentes na obra da Natureza, mas esses
acidentes não excluem a ideia de ordem, de finalidade; ao contrário, eles vêm
em apoio da nossa tese, pois poderíamos nos perguntar, por que não é tudo um
acidente?
A apropriação das causas aos efeitos, dos meios à finalidade, a
dos órgãos entre si, sua adaptação ao meio, às condições da vida, são
manifestas. A indústria da Natureza, análoga em muitos pontos e superior a do
homem, prova a existência de um plano e o emprego dos elementos que concorrem
para sua realização denota uma causa oculta infinitamente sábia e poderosa.
Quanto à objeção dos monstros, ela provém de um defeito de
observação. Os monstros são apenas germens desviados. Se um homem ao cair
quebra a perna, far-se-á remontar a responsabilidade à Natureza ou a Deus? Da
mesma forma, em consequência de acidentes, de desordens, sobrevindas durante a
gestação, os germens podem sofrer desvios do seio da mãe. Estamos habituados a
datar a vida do nascimento, da aparição do ser para luz, mas a vida tem seu
ponto de partida muito mais distante.
O argumento fraco da
existência dos flagelos tem como origem uma falsa interpretação do objetivo da
vida. Esta não deve somente nos propiciar aprovações: é útil, é necessário que
ela nos apresente, também, dificuldades. Todos nós nascemos para morrer, e nos
espantamos que certos homens morram de acidente! Seres passageiros nesse mundo,
do qual nada levaremos para o Além, lamentamo-nos pela perda de bens que se
perderiam por si mesmos em virtude das leis naturais! Esses acontecimentos
assustadores, essas catástrofes, esses flagelos trazem consigo um ensinamento.
Eles nos lembram de que não devemos esperar da Natureza apenas coisas
agradáveis, mas, sobretudo, coisas propícias à nossa educação e ao nosso avanço;
que não estamos, aqui, para usufruir e adormecermos na quietude, mas para
lutar, trabalhar, combater. Eles nos dizem que o homem não é feito unicamente
para a Terra, que deve olhar mais alto, apenas se apegar às coisas materiais na
medida justa e pensar que seu ser não é destruído pela morte.
A doutrina da evolução não exclui a das causas primárias e das
causas finais. A ideia mais elevada, que se possa fazer de um ordenador, é de
supô-lo formando um mundo capaz de se desenvolver através de suas próprias
forças, e não por uma intervenção incessante e de contínuos milagres.
A Ciência, na medida em que avança no conhecimento da Natureza,
pôde fazer Deus recuar, mas, recuando, Deus cresceu. O Ser eterno, do ponto de
vista teórico da evolução, tornou-se tão majestoso quanto o Deus fantasioso da Bíblia.
O que a Ciência arruinou para sempre é a noção de um Deus antropomórfico, feito
à imagem do homem e exterior ao mundo físico. Uma noção mais elevada veio
substituir esta: a de um Deus imanente, sempre presente ao acontecimento das
coisas. A ideia de Deus, hoje, não exprime mais para nós a de um ser qualquer,
mas a ideia do Ser, no qual estão contidos todos os seres.
O Universo não é mais essa criação,
76 essa obra tirada do nada, da qual falam as religiões. O Universo
é um organismo imenso, animado por uma vida eterna. Assim como nosso próprio
corpo é dirigido por uma vontade única que comanda seus atos e regula seus
movimentos; assim como cada um de nós, através das modificações da sua carne,
sente-se viver numa unidade permanente a que chamamos alma, a consciência, o
eu, assim o Universo, sob suas formas mutantes, variadas, múltiplas, se
conhece, se reflete, se possui numa unidade viva, numa razão consciente que é
Deus.
O Ser supremo não existe fora do mundo; ele é parte integrante
deste, essencial. Ele é a unidade central, onde vêm ter êxito e se harmonizar
todas as relações, o princípio de solidariedade e de amor pelo qual todos os
seres são irmãos. Ele é o foco de onde irradiam e se espalham no Infinito todas
as potências morais: a sabedoria, a justiça, a bondade!
Ele não é, portanto, criação espontânea, miraculosa; a criação é
contínua, sem começo nem fim. O Universo sempre existiu; ele possui em si seu
princípio de força, de movimento; traz consigo seu objetivo. O mundo se renova
incessantemente em suas partes; no seu conjunto, ele é eterno.
Tudo se transforma e evolui pelo jogo contínuo da vida e da morte,
mas nada perece. Enquanto que, nos céus sóis se tornam obscuros e se apagam,
enquanto mundos envelhecidos se desagregam e se dissipam, em outros pontos,
sistemas novos se elaboram, astros se acendem, mundos nascem para a luz. Ao
lado da decrepitude e da morte, humanidades novas desabrocham num
rejuvenescimento eterno.
A obra grandiosa segue através dos tempos sem-marcos e dos Espaços
sem-limites, pelo trabalho de todos os seres, solidários uns aos outros e em
proveito de cada um deles. O Universo nos oferece o espetáculo de uma evolução
incessante, da qual todos participam. Um princípio imutável preside essa obra:
é a unidade universal, unidade divina, a qual abraça, religa, dirige todas as
individualidades, todas as atividades particulares, fazendo-as convergir para
um objetivo comum, que é a perfeição na plenitude da existência. 77
76 Segundo Eugène Nus Em Busca dos Destinos, cap. XI), o
verbo hebreu que traduzimos pela palavra cria significa fazer passar
do princípio à essência. (N.A.)
“77 Ele é um, procriado de
si mesmo, e desse um todas as coisas saíram, ele está nelas, e as envolve, e
nenhum mortal o viu, mas ele próprio os vê a todos” (“Hinos Órficos”). (N.A.)
*
* *
Enquanto as leis do mundo físico nos mostram a ação de um sublime
ordenador, as leis morais, por intermédio da consciência e da razão, falam-nos
eloquentemente de um princípio de justiça, de uma providência universal.
O espetáculo da Natureza, a visão dos céus, das montanhas, do mar
apresentam ao nosso espírito a ideia de um Deus oculto no Universo.
A consciência mostra-o em nós, ou melhor, ela mostra em nós
alguma coisa dele: é o sentimento do dever e do bem; é um ideal moral para o
qual tendem as faculdades do espírito e os sentimentos do coração. O dever
ordena imperiosamente; impõe-se; sua voz comanda todas as potências da alma.
Há nele uma força que impulsiona os homens até o sacrifício. Apenas ele dá à
existência sua grandeza, sua dignidade. A consciência é a manifestação em nós
de uma potência superior à matéria, de uma realidade viva e agente.
A razão nos fala,
igualmente, de Deus. Os sentidos fazem-nos conhecer o mundo material, o mundo
dos efeitos; a razão nos revela o mundo das causas; ela é superior à
experiência. Esta constata os fatos, a razão os agrupa e deles deduz as leis.
Apenas ela nos demonstra que na origem do movimento e da vida encontra-se a
inteligência, que o menor não pode conter o maior, nem o inconsciente produzir
o consciente, o que resultaria, entretanto, da concepção de um Universo que se
ignora a si mesmo. A razão descobriu as leis universais antes da experiência;
esta apenas confirmou suas visões e dela forneceu a prova. Mas há graus na
razão; essa faculdade não é igualmente desenvolvida em todos os homens. Daí, a
desigualdade e a variedade de suas opiniões.
Se o homem soubesse se recolher e se estudar, se afastasse da sua
alma toda a sombra que aí acumulam as paixões; se, rasgando o véu espesso nos
quais os preconceitos, a ignorância, os sofismas o envolveram, descesse ao
fundo da sua consciência e da sua razão, ele aí encontraria o princípio de uma
vida interior completamente oposta à vida exterior. Através dela, ele poderia
entrar em relação com a Natureza inteira, com o Universo e Deus, e essa vida
lhe daria como um antegozo daquela que lhe reservam o futuro no Além e os
mundos superiores. Ali também está o livro misterioso onde todos os seus atos,
bons ou maus, inscrevem-se, onde todos os fatos da sua vida se gravam em
caracteres indeléveis, para reaparecer numa resplandecente claridade na hora da
morte.
Às vezes, uma voz poderosa, um canto grave e severo eleva-se
dessas profundezas do ser, reprime-nos no meio das ocupações frívolas e dos
cuidados da nossa vida, para nos chamar ao dever. Infeliz aquele que se recusa
a ouvi-la! Um dia virá em que os remorsos lhe ensinarão que não se rechaça em
vão as advertências da consciência.
Há, em cada um de nós, fontes ocultas de onde podem jorrar ondas
de vida e de amor, virtudes, potências sem-conta. É aí, no santuário íntimo,
que é preciso procurar Deus. Deus está em nós ou, pelo menos, há em nós um
reflexo dele. Ora, o que não é não poderia ser refletido. As almas refletem
Deus como as gotas do orvalho refletem as luzes do Sol, cada uma segundo o seu
grau de pureza.
É através dessa percepção interior e não pela experiência dos
sentidos, que os homens de gênio, os grandes missionários, os profetas
conheceram Deus e suas leis e os revelaram aos povos da Terra.
*
* *
Pode-se levar mais além do que fizemos a definição de Deus?
Definir é limitar. Em face desse grande problema, a humana fraqueza aparece.
Deus se impõe ao nosso espírito, mas escapa a qualquer análise. O Ser que
preenche o tempo e o Espaço não será jamais medido por seres que o tempo e o
Espaço limitam. Querer definir Deus, seria circunscrevê-lo e quase negá-lo.
As causas secundárias da vida universal se explicam, mas a causa
primária permanece intocável na sua imensidade. Só chegaremos a compreendê-la
depois de ter atravessado muitas vezes a morte.
Tudo o que podemos dizer para resumir é que Deus é a vida, a
razão, a consciência, na sua plenitude. Ele é a causa eternamente ativa de tudo
o que é, a comunhão universal onde cada ser vem haurir a existência para, em seguida,
concorrer, na medida das suas faculdades crescentes e de sua elevação, à
harmonia do conjunto.
Eis-nos bem distante do Deus das religiões, do Deus “forte e
ciumento” que se rodeia de relâmpagos, reclama vítimas sangrentas e pune pela
eternidade. Os deuses antropomórficos viveram. Fala-se muito ainda de um Deus
ao qual se atribuem as fraquezas e as paixões humanas, mas esse Deus vê cada
dia diminuir seu império.
Até aqui, o homem viu Deus apenas através de seu próprio ser e a
ideia que dele se fez variou segundo o que contemplava com uma ou outra das
suas faculdades. Considerado através do prisma dos sentidos, Deus é múltiplo;
todas as forças da Natureza são deuses; assim nasceu o politeísmo. Visto pela
inteligência, Deus é duplo, espírito e matéria, daí o dualismo. Para razão
pura, ele parece triplo: alma, espírito e corpo. Essa concepção fez nascer as
religiões trinarias da Índia e o Cristianismo. Percebido pela vontade, captado
pela percepção íntima, propriedade lentamente adquirida, como se adquiriram
todas as faculdades do gênio, Deus é Único e Absoluto. Nele, os três princípios
fundamentais do Universo se religam para constituir uma unidade viva.
Assim se explica a diversidade das religiões e dos sistemas,
tanto mais elevados foram concebidos pelos espíritos, quanto mais puros e mais
esclarecidos. Quando se considera do alto as coisas, as oposições de ideias, as
religiões e os fatos históricos se explicam e se reconciliam numa síntese
superior.
A ideia de Deus, sob as formas diversas de que se revestiu,
evolui entre dois escolhos, sobre os quais fracassaram numerosos sistemas. Um
deles, o panteísmo concluiu pela absorção final dos seres no Grande Todo. O
outro é a noção de Infinito, que afasta tanto Deus do homem que parece suprimir
qualquer relação entre eles.
A noção de Infinito foi combatida por certos filósofos. Embora
incompreensível, não se saberia, entretanto, afastá-la, pois ela reaparece em
todas as coisas. Por exemplo, o que há de mais sólido que o edifício das Ciências
exatas? O número é a base delas; sem ele, não há mais Matemática. Ora, é
impossível, levaríamos séculos para encontrar o número que exprimisse os
números infinitos cujo raciocínio nos demonstra a existência. Acontece o mesmo
com o tempo e o espaço. Além dos limites do mundo visível, o pensamento procura
outros limites que, continuadamente, furta-se ao seu golpe.
Uma única filosofia parece
ter evitado esse duplo escolho e conseguiu religar princípios opostos na
aparência. É a dos druidas gauleses. Eles se exprimiam assim na tríade 48:78
“Três necessidades de Deus: ser infinito em si mesmo, ser finito
em relação ao finito e estar em relação com cada estado das existências no
círculo dos mundos.”
Assim, de acordo com esse ensinamento, ao mesmo tempo simples e
racional, o Ser infinito e absoluto por si mesmo se faz relativo e finito com
suas criaturas, revelando-se continuadamente sob aspectos novos, à medida do
progresso e da elevação das almas. Deus está em relação com todos os seres.
Penetra-os com seu espírito e envolve-os com seu amor, para uni-los num elo
comum e ajudá-los a realizar suas aspirações.
Sua revelação, ou melhor, a educação que dá às humanidades, se
faz gradual e progressiva, pelo ministério de seus grandes espíritos. A
intervenção providencial manifesta-se na História pela aparição em tempos
prescritos, no seio dessas humanidades, almas de elite encarregadas de ali
introduzir as inovações, as descobertas que acelerarão seus progressos ou para
ensinar os princípios de ordem moral necessárias à regeneração das sociedades.
Quanto à absorção final dos seres em Deus, o Druidismo dele
escapava fazendo de Ceugant, círculo superior encerrando todos os outros
círculos, a morada exclusiva do Ser divino. A evolução e o progresso das almas,
perseguindo-se no sentido do Infinito, não podiam ter um fim.
78 Tríades Bárdicas. Cyfrinach Beirdd Inys Prydain. (N.A.)
*
* *
Retomemos o problema do mal, que preocupou tantos pensadores e dos
quais falamos apenas incidentalmente.
Por que Deus, causa primária de tudo o que é, perguntam os
céticos, deixa subsistir o mal no Universo?
Vimos que o mal físico ou o que é considerado como tal, está, na
realidade, na ordem dos fenômenos naturais. Seu caráter malfazejo é explicado,
desde que se conheça a verdadeira razão das coisas. A erupção de um vulcão não
é mais extraordinária do que a ebulição de um vaso cheio d’água. O raio que
destrói os edifícios e as árvores é da mesma natureza que a centelha elétrica,
veículo do nosso pensamento. É assim com todos os fenômenos violentos. A dor
física permanece; mas sabe-se que ela é a consequência da sensibilidade e esta
já é uma magnífica conquista que o ser só realizou depois de longos estágios
passados nas formas inferiores da vida. A dor é uma advertência necessária, um
estimulante para a atividade do homem. Ela nos obriga a voltarmos para dentro
de nós mesmos e a refletirmos; ela nos ajuda a domar nossas paixões. A dor é o
caminho do aperfeiçoamento.
Mas o mal moral, dir-se-á o vício, o crime, a ignorância, o triunfo
dos maus e o infortúnio dos justos, como os explicariam?
Primeiro, de que ponto de vista nos colocamos para julgar as
coisas? Se o homem vê somente o canto do mundo em que vive, se apenas vislumbra
sua curta passagem pela Terra, como poderia conhecer a ordem eterna e
universal? Para pesar o bem e o mal, o verdadeiro e o falso, o justo e o
injusto, é preciso elevar-se acima dos limites estreitos da vida atual e
considerar o conjunto dos nossos destinos. Então, o mal aparece como um estado
transitório, inerente ao nosso globo, como uma das fases inferiores da evolução
dos seres para o bem. Não é no nosso mundo e no nosso tempo que é preciso
procurar o ideal perfeito, mas na imensidade dos mundos e na eternidade dos
tempos.
Todavia, se observamos a lenta evolução das espécies e das raças
através das idades; se consideramos o homem dos tempos pré-históricos, o
antropoide das cavernas, de instintos ferozes, e as condições de sua vida
miserável, e se comparamos, em seguida, esse ponto de partida com os resultados
obtidos pela civilização atual, veremos claramente a tendência constante dos
seres e das coisas para um ideal de perfeição. A própria evidência no-lo
demonstra: a vida sempre melhora, transforma-se e se enriquece, a soma do bem
aumenta sem parar e a soma dos males diminui.
E se percebemos tempos de pausa e, às vezes, até de recuos nessa
progressão para o melhor, é preciso não esquecer que o homem é livre, que ele
pode determinar-se à sua vontade num sentido ou no outro. Seu aperfeiçoamento
só é possível quando sua vontade está de acordo com a Lei.
O mal, oposição à lei divina, não pode ser a obra de Deus; é,
então, a obra do homem, a consequência da sua liberdade. Em princípio, o mal,
como a sombra, não tem existência real: é mais um efeito de contraste. As
trevas se dissipam diante da luz; assim como o mal se desvanece desde que o bem
aparece. O mal, em uma palavra, é apenas a ausência do bem.
Ora, diz-se, às vezes, que
Deus poderia ter criado almas perfeitas e poupar-lhes, assim, das vicissitudes
da vida terrestre. Sem pesquisar se Deus teria podido formar seres semelhantes
a ele, nós responderemos que, desse fato, a vida e a atividade universais, a
variedade, o trabalho, o progresso não teriam tido um objetivo; o mundo seria
congelado na sua imóvel perfeição. A magnífica evolução dos seres através dos
tempos não é preferível a um morno e eterno repouso? Um bem que não se merece
nem se conquistou seria um bem e aquele que se obteria sem-esforço poder-se-ia
apreciar-lhe o valor?
Diante da vasta perspectiva das nossas existências das quais cada
uma é um combate pela luz; diante dessa ascensão grandiosa do ser elevando-se
de círculos em círculos para o perfeito, o problema do mal desaparece.
Sair das baixas regiões da matéria e gravitar todos os degraus da
hierarquia dos espíritos, libertar-se do jugo das paixões e conquistar uma a
uma todas as virtudes, todas as ciências, tal é o objetivo para o qual a
Providência formou as almas e dispôs os mundos, teatros predestinados de nossas
lutas e de nossos trabalhos.
Creiamos nela e bendigamo-la! Creiamos nessa Providência generosa
que tudo fez pelo nosso bem; lembremo-nos de que se parece que a existência tem
lacunas na sua obra, elas provêm apenas da nossa ignorância e da nossa
insuficiente razão. Creiamos em Deus, grande Espírito da Natureza, que preside
o triunfo definitivo da justiça no Universo. Tenhamos confiança na sua
sabedoria, que reserva compensações a todos os sofrimentos, alegrias a todas as
dores, e avancemos com um coração firme os destinos que ele nos escolheu.
É belo, consolador e doce
poder caminhar na vida, a fronte erguida para os céus, sabendo que, mesmo nas
tormentas, no meio das provas mais cruéis, no fundo dos cárceres como na beira
dos abismos, uma Providência, uma Lei Divina plana sobre nós, rege nossos atos;
que de nossas lutas, de nossas torturas, de nossas lágrimas, ela faz sair nossa
própria glória e nossa felicidade. É nesse pensamento que está toda a força do
homem de bem.
Livro "Depois da Morte" - Capítulo IX - Léon Denis